as pedraS . . .

          e gastava horas em
          suas grandiosas batalhas de
          xadrez
          contra reis
          de países fronteiriços

mas qual oponente
se assoma numa partida
senão aquele que
em nós se abriga?

        no tabuleiro jaz o jogo
        mas é dentro de nós que
        se faz o fogo
        de toda lida

                               e realmente não se ajusta
                               qualquer rixa qualquer justa
                               num jogo de xadrez



                                   (Rio, 9 de março de 2016)
O canário brotou do pensamento
E como uma superfície líquida
Ele foi música divina
Cristal de penas e pulos
Pintura sem moldura numa parede silenciosa

Com as gotas de sua melodia
Nasciam botões de luz por toda a sala
E o tempo de uma tarde parava
E somente só havia o presente
Onde uma criança brincava pela tarde
Eterna e dourada tarde de uma vida inteira


Nenhum abismo se abria sob os pés
Nem do canário e nem do menino
E os botões de luz viraram gotas
E até hoje refratam o sol
Nesta ante-sala a céu aberto da vida


(15 de julho, 2017)

















(Rooms by the sea - Edward Hopper, 1951)


.


[LIMIARES...]


ontem a galeria fedia
fedia de um homem na charutaria
ainda no balcão de vidro
no limiar da rua
esse homem fedia
de um cheiro insuportável, acre
um homem no limiar da vida
entre uma esquina e outra
pêndulo sem cordão
objeto de escárnio
de outros que sem coração
não lhe darão nem um banho
nem uma moeda sequer

ontem a galeria fedia
mas fedia não só de uma podridão
mas fedia de uma verdade crua
não nua porque vestida
vestida de uma roupa batida
batida, pútrida e cagada
numa pele batida, imunda, surrada
retirante de um êxodo interno
homem que criou raízes no fundo
tão-somente no fundo
de sua imundície:
seu lar sem paredes,
seu asilo, seu mundo



(Julho de 2013)
silêncio profundo
silêncio do tamanho do mundo
de onde nenhum passarinho pode sair

silêncio profundo
silêncio do tamanho do tempo
árvore na campina carregada de anjos

silêncio profundo
silêncio azul de um prelúdio
nuvens e canários à espera



(3 de agosto de 2017)
Estou começando a aceitar,
Aceitar sentir as coisas no fundo
As coisas fundas no fundo da alma

Estou começando a permitir
O mergulho no momento denso
O peito comprimido e o corpo oprimido
Dentro de uma atmosfera densa

Estou evitando fugas
Porque já descobri
Que fugas não existem

Estou vivendo a solidão quando
A solidão assim insiste
E aprendendo a viver a companhia
Quando os companheiros vão surgindo
Ao caminho

Às vezes percebo as facetas de Deus
E toda a sua generosa dualidade:
Há momentos em que somos habitantes
Do tempo e do lugar que nos cerca
E há momentos em que somos forasteiros dentro
Desses mesmos lugar e 
Tempo

Somente existe o momento
E se consigo sentir e acatar isso
Se desfaz esse tormento
De se sentir alheio e estrangeiro
A tudo


.

A bondade de Deus é mostrar-nos o sofrimento e
O seu doce reverso
Quando neste agora
Escrevo uns versos ou
Algo do gênero
E passo a morar pleno no tempo
Mesmo que momentaneamente



(24 de junho de 2017)
...

Fora da Poesia eu quero somente o silêncio
O silêncio puro, o silêncio sagrado

Aqui nesta urbe tudo me conturba
Tudo me tumultua, me exaure

Quero o silêncio como a minha única morada
O Silêncio sem paredes e sem cimento

Quero o Silêncio como minha última pátria
O Silêncio denso, pleno, frio, sussurrado pelo Vento

Quero o Silêncio dentro e quando ele for encontrado
Estarei em casa e triunfarei sobre o tempo.

(Com o olhar de um monge
budista
Miro relógios e vejo as pessoas neles
espelhadas
E sinto na alma uma compaixão
Ou algo parecido por não ser um monge
Mas como um monge perceber o quanto longe
Está a humanidade de si mesma)




(21 de julho de 2017)
I.

uma divindade caminha pela tarde
feliz apenas por estar
sob o sol tênue que arde
levemente por sobre pupilas violetas


II.

minha verdade, é a divindade quem me dá
e, sigo feliz pela tarde,
feliz apenas por caminhar
sol ameno sobre o pensamento
meu corpo meu único instrumento
e foi a divindade quem me deu.
e, feliz daquele que leu
o que o poeta decanta
que sua palavra encanta
qualquer alma que entristeceu




In: Deus, e outras coisas, Acervo EDA




CÁTEDRA




para se tratar doenças
é preciso conhecer doenças
e para conhecer doenças
é necessário adoecer.

um médico deve adoecer
um médico deve adoecer antes
de frequentar a faculdade
de medicina
um médico deve adoecer durante
todo o curso de medicina
para conhecer das doenças
na sede perfeita onde se dá
todo o conhecimento:
o corpo

a cátedra



.

13 de abril de 2017

,

,

sob a neblina é tudo real
tudo tão real quanto o fantasma
do pai de Hamlet a proferir as tristes novas
e toda Corte mergulhada em brumas
tornava-se mais nítida realidade

meu pai antes estava em delírios
nos últimos dias de sua última internação
e nos delírios ele sempre pronunciava
dois nomes dos quais
nenhum deles eu lembro mais...

porém, depois de sua partida
falei para alguém um dos nomes
de que ainda eu me lembrava
e este alguém me disse
que esse nome se tratava
do nome de um anjo...

quero somente o silêncio agora

.

12 de março de 2017
às vezes eu não tenho o menor silêncio
interior

todo meu silêncio é às vezes um maldito Carnaval

e meus pensamentos brincam e cantam e se divertem
jogam serpentinas pelas ruas sinuosas da minha mente
e seguem em blocos por sobre
os pavimentos densos de minha alma
pisoteando uma substância que dói
mas nem se sabe disso por não ser
viva tão viva para falar
dura-máter que apenas sente...

e amanhã os foliões refarão os mesmos percursos


.
Rio, 19 de fevereiro de 2017
entre tantos entretidos
com seus celulares em seus
universos particulares
um homem com
uma caneta em
uma órbita própria
gira ao redor de um sol
e poucos poderiam perceber
a luz tênue rebatida
por seu corpo só


------ x -------


são terrenos ocultos as
páginas em branco
e poucos se aventuram a
percorrê-las
embora apenas a mão o faça

mas
ao espírito a página é por demais
vasta
e tanto ele se afasta de tudo e
longe demais tanto
não se sabe se
volta...


muitos temem páginas em branco


------ x -------



a língua muda dos degredados
embora nem fora do país estejam
porém seus corpos aqui presos
transeuntes cujas almas
já há muito aportaram
outras terras


eu ouço a língua dos degredados
nos interstícios do dia
e nos substratos da realidade sensível
nos comunicamos em fraterna
mudez

(cães de donos bem alimentados
ao cruzarem por mim
rosnaram e tentaram me
avançar
como se vissem um grande perigo
mas era apenas um homem ferido
pelo luto e a luta
por manter seu pai vivo)



Rio, 30 de janeiro de 2017