as pedraS . . .

BIODEGRADÁVEL



no mangue, muitos sacos plásticos pousam nas árvores
ao fim do dia
e tudo fica salpicado de belas garças.

quando garrafas pet aglomeradas vêm às margens,
os ribeirinhos lançam as redes
e é lindo de ver o cardume verdinho prateando.

e tem carcaças de automóveis nodosas que dão até ninhos
com copas de capôs que abrigam da chuva.

nas águas gordas da baía se vê o bailado dos entulhos,
momento em que as crianças se debruçam das barcas
para contemplar o nado sincronizado e eterno dos botos




IN:  32 POEMAS PARA CADA COISA. Ed. Confraria do vento.
as coisas maiores são
os gestos menos abrangentes

formigas sabem folhinhas são
esforço de todo formigueiro

mas há botões
de desejos natimortos
em hortos tortos do fazendo
e
uma safra de sorrisos
é muito perigosa ao país




IN:  32 POEMAS PARA CADA COISA. Ed. Confraria do vento.
uma salva de silêncio fecha o dia

a rua abre como um fecho éclair
facho claro feixe de luzes de latarias
fluida como modorra que corre no olhar
do motorista

o corpo inerte do chauffeur
é o próprio corpo o fim último do labor
entalado nos lábios da rua,
o corpo grita num abafo
mas engrena.

foi dada ao homem a chave do dia
porém as portas intransponíveis dos vãos de ruas
abertas
quando cada movimento um aborto
uma consciência se acomoda
paraplégica numa poltrona
e temos gamas de cores gritantes nas telas
tênues tons de timpânicas vozes
a consciência entalada
na abertura da rua como fecho.

há lamúria por trás do sorriso
há uma faca sangrando a luz
pontiaguda no cerne da luminescência
há uma salva de silêncio porém
no dia que se abre,
um clarim claro
no escuro-ainda



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POMBOS


a tarde é chapa de metal escovado

na cornija de ferro alinhados,
arrulham aço
e ciscam ranhuras de zinco.

um homem parado no sinal
toma chuva
enquanto um táxi toma café
e um ambulante toma cinco real.

o dia veste malha
de gotas miúdas
trançadas na queda.
a menina veste um sorriso
e um lábio vermelhinho
pra esquentar os dentes.

limalhas de ferro na moela
trituram o dia com facilidade.

um transeunte pensativo,
voando gaivota,
toma titica.

pombos digerem a rigidez das coisas
e cagam
em nossas cabeças.
sacodem a cauda
e alçam vôo



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PELORINHO



Pelas ladeiras do Pelô
Perambulam todas as cores
Peles e pandeiros
Pessoas e tambores

Pelorinho não mais existe
Passado pelo tempo desgastado
Porém o calçamento resiste

Pneus agora terminam de polir
Pedras que testemunharam pretos
Pagando por erros alheios
Prostrados no vigor da raça

Pedintes se misturam à multidão
Povo que suporta o legado
Personagens atuais do passado triste
Prole de quem sobreviveu à escravidão
Prisoneiros de um Brasil manchado
Proscritos no país das migalhas
Pretos
pobres
Pedras
Pisadas por tênis e sandálias




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perante a grandeza de tudo somos nada
e boquiabertos bebemos estrelas
e solfejamos o silêncio em devota adoração
e cutucamos o intangível como que na infância
e tudo é apenas tato.

porque carregamos um vazio
tudo nasce de nós
e somos nada.

a tangibilidade de tudo é o parentesco
entre todas as coisas,
e ela não tem corpo,
como o nada.

a presença de Deus é uma ausência absoluta





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